top of page
Buscar

O Que os Manuais de Roteiro Não Ensinam

Manuais são ótimos para analisar um filme já escrito. Mas e quando nós encaramos uma tela em branco? Craig Mazin ajuda a resolver este problema.

Os manuais de roteiro e livros que analisam a estrutura de filmes são uma fonte inestimável de conhecimentos. Eu mesmo listo meus preferidos neste post. No entanto, ontem, e apenas ontem, eu tive contato com o episódio 403 do maravilhoso podcast "Scriptnotes", de John August e Craig Mazin, em que Mazin expõe o conteúdo de uma palestra recorrente dele sobre a gênese de um filme. Quando o autor de "Chernobyl" fala, a gente escuta. E para aqueles que não são fluentes em inglês, decidi passar aqui neste texto os principais pontos que Mazin tão sabiamente dividiu com seus ouvintes.


Para Mazin, estrutura não é dizer em que momento do filme deve entrar cada beat. Ao seguir os manuais passo a passo e focar antes de tudo na estrutura, arrisca-se a ter-se um péssimo filme que foi muito bem estruturado. Mazin defende que estrutura sólida é o fim de uma estória excelente, e não seu início.


Estrutura é "o sintoma da relação de uma personagem com um argumento dramático central".

Estrutura não é uma ferramenta, é um sintoma. Um excelente escritor não segue uma planta estrutural, ele segue a trajetória de uma personagem nas idas e vindas de seu relacionamento com um argumento dramático que tem ressonância com seres humanos reais, no mundo real.


Ele destaca que, por mais úteis que sejam os livros que analisam roteiros, em especial os manuais como Save The Cat!, Story e A Jornada do Escritor, todos eles compartilham do mesmo pecado: foram feitos a partir da análise de filmes já prontos, observando as similaridades estruturais entre estes filmes. Têm seu valor, obviamente, mas não explicam os porquês. Por que existe um incidente incitante? Por que precisa haver um Midpoint? Por que o protagonista passa pelo momento crítico que Blake Snyder chama de The Dark Night of the Soul?


Estes livros te dizem o que é cada beat, a importância deles na trama para quem assiste e concluem que praticamente todo bom filme age em conformidade com determinados paradigmas estruturais. Mas nenhum livro sobre roteiro de cinema, talvez com exceção do pai de todos, A Poética, de Aristóteles, e do maravilhoso - e brasileiro! - Manual do Roteiro, do Leandro Saraiva e do Newton Cannito, aborda as razões pelas quais um midpoint é necessário, ou por que um break into three ecoa tanto em quem vê um filme. Mazin faz isso de forma genial, usando uma abordagem hegeliana. Hegel foi um filósofo alemão conhecido, entre outras coisas, por seu estudo da dialética. E a abordagem dialética é a que Mazin aconselha na escrita de um filme.


A dialética começa basicamente por uma tese. Como toda tese, para sua validação - ou não - ela deve ser confrontada por sua antítese. A partir do conflito entre tese e antítese, chegamos à síntese, uma nova tese que leva em consideração as descobertas provocadas por este embate entre tese e antítese. A síntese no futuro tornar-se-á uma nova tese, que será confrontada por uma nova antítese, e assim segue a vida.


Este conflito funciona num filme porque nossa vida é um fluir dialético eterno. Estas são as transformações pelas quais passamos no mundo real. Amadurecer é confrontar nossas teses com suas respectivas antíteses, que o mundo constantemente nos apresenta. E é sobre este princípio básico que um filme se sustenta.


A narrativa, o roteiro, nos ajuda a nos mover por um mundo em mudança. Mas a estória, que dá base ao roteiro, trata desta uma mudança de estado, da tese até a síntese, passando pela antítese. Este conflito de forças existe em qualquer cena. A estrutura, portanto, é a decorrência natural deste processo, quando ele é bem feito.


São três os níveis em que esta mudança se aplica. O primeiro é interno, o que se passa dentro da personagem: pensamentos, sentimentos. Este nível perpassa praticamente todas as cenas. O segundo é o interpessoal, fala da mudança na relação entre personagens e, à medida que a estória avança, esta relação se redimensiona, sofre, alcança pontos altos e baixos. E, finalmente, o externo, a narrativa, o que acontece em volta das personagens, e que geralmente é uma linha reta, do início ao fim. Todas estas mudanças são feitas através de cenas, que seguem o modelo hegeliano.


Repetindo:


Em qualquer momento de um filme, em qualquer cena, tudo começa numa tese, que é confrontada por uma antítese, e depois dá origem a uma síntese, que se torna uma nova tese. E quem movimenta este ciclo é o escritor.

Quando se começa uma cena, existe uma situação envolvendo um ou mais destes três eixos de mudança - interno, interpessoal ou externo. O escritor dispara algo que fere o equilíbrio de ao menos um deels e começa algo novo.


E qual é a cola que mantém essas mudanças numa direção comum?


O tema.


Tema não é unidade, na forma aristotélica exposta em "Poética". Tema é o seu argumento dramático central. Ele pode ser clichê ou pode ser inovador, isso não importa. Um tema clichê pode criar um filme genial. Mas veja bem, um tema tem que ter um argumento que possa ser combatido. Um péssimo roteirista diz: "vou fazer um filme sobre amizade". Isso não é um tema, isso é um balão de ar, vago, sem efeito. Já um bom escritor diz: "vou fazer um filme sobre como homens e mulheres não podem ser amigos". Isto é um tema. Porque é um argumento central que você pode abordar, contestar. OK, é um tema super clichê, mas dele saíram filmes geniais como "Harry e Sally, Feitos Um Para o Outro" e "Lost in Translation", uma infinidade de filmes medianos, como "O Casamento do Meu Melhor Amigo", e alguns medíocres como "Friends with Benefits".


A pergunta que subsidia o escritor na definição de seu tema é: "por que este filme precisa existir?"

Vamos fazer o caminho da ideia ao tema e, por fim, ao roteiro, porque nem sempre a gente encontra o tema antes de ter uma ideia. Isso é normal, o processo criativo pode ser meio caótico e é muito particular. Mas vamos ao exercício.


A ideia: um peixe tem que encontrar outro peixe na vastidão do oceano. Ideia maneira. Dá caldo. Agora, que temas ecoam mais fortemente com esta ideia?


Vamos ao argumento central número 1: "se você tentar de verdade, você pode encontrar qualquer coisa", até mesmo um peixe específico no meio de um oceano. Ou então o argumento 2: "às vezes, o que nós procuramos é justamente aquilo de que precisamos nos livrar". Vamos ao argumento 3: "você não pode encontrar a felicidade lá fora, você tem que encontra-la em si mesmo".


Beleza, três ideias, uma um pouco mais interessante que a outra. Mas vamos tentar um quarto argumento central: "não importa o quanto você se prenda a quem você ama, em algum ponto da vida você tem que deixa-lo ir embora".


Opa, aí está um argumento que pode ressonar com minha ideia inicial e criar um filme com que todos se identifiquem. Quem não precisa, em algum momento, exercer o desapego de quem se ama? Filhos, namoradas, um animal de estimação, um avô que está morrendo, uma amizade co-dependente. Desde muito jovens nós passamos nossas vidas aprendendo a nos desapegar de quem amamos. Clichê demais, já virou até ditado ruim - se você ama de verdade, deixe-o ir. Mas veja bem como ressoa lindamente com a ideia de um peixe procurando outro no meio do oceano. Automaticamente você, o autor, sabe que um peixe vai encontrar o outro, depois de uma batalha ferrenha contra os terrores do oceano, e assim mesmo terá que deixa-lo ir. Olha que final maravilhoso você encontrou, apenas casando a ideia certa com o tema certo, com o argumento dramático certo!


Isso é estrutura temática. Preste bem atenção:


Na estrutura temática, o propósito da estória é tirar seu protagonista de um estado de ignorância em relação à verdade do seu tema até o ponto em que este protagonista se torna a personificação do tema, e esta transformação se dá por meio da ação.

A gente começa com seu protagonista no mundo ordinário, você já leu isso milhões de vezes. Ordinário não quer dizer mundano, apesar de algumas vezes as duas classificações se encontrarem. Mad Max começa completamente despirocado, por exemplo. Ordinário quer dizer um estado de ignorância do seu protagonista em relação ao tema. Aliás, mais do que ignorância, o seu protagonista precisa acreditar no oposto do seu tema. Isso é o que torna sua jornada tão preciosa e difícil. Herman Hesse, no seu maravilho livro Demian, diz que nascer é destruir um mundo. É isso o que nosso protagonista faz: ele destrói seu mundo, sua tese, e o faz por meio da ação ao navegar pela antítese - que nada mais é do que o nosso tema.


Repetindo: o tema do filme é a antítese do que o protagonista acredita. O protagonista, no início do filme, incorpora a tese, o contrário do nosso tema.


O início de um filme sempre encontra o protagonista numa estase, um certo equilíbrio em sua vida. Isso não significa felicidade. A vida do protagonista poderia continuar seguindo daquele jeito para sempre, não fosse a mão escrotinha do autor Deus, que dá um empurrão e rompe o equilíbrio.


Vejamos: nosso peixinho, Marlin, não acredita que deixar seu filho Nemo livre é o melhor. Nemo está estressado com o pai, mas OK, para Marlin o menino está em segurança. Nenhum dos dois está muito feliz, mas as coisas estão equilibradas. Estase nada mais é do que um estado de imperfeição aceitável.


Nosso trabalho como escritores é dar o empurrão que desequilibra o estado de imperfeição aceitável. E sabe o que é este empurrão? O incidente incitante.


"Ah, é por isso que existe um incidente incitante..." Pois é. Sem o incidente incitante o estado de imperfeição aceitável continuaria indefinidamente. E é por isso que ele aparece no início do filme, porque o estado de imperfeição aceitável é chato inclusive no mundo real. Todos nós vivemos em estase em algum aspecto de nossas vidas e não gostamos muito disso. Por mais que a gente não tenha coragem ou disposição de colocar todos os aspectos de nossas vidas em constante mudança, porque senão nossa vida seria ingovernável, nós não queremos ser lembrados que estamos em estase, que estamos abrindo mão de certo grau de felicidade em algum aspecto da vida para vivermos na imperfeição aceitável. Sem o empurrão do escritor, não acontece a estória. Não se abre o caminho da tese para a síntese. E a gente tem a impressão de que o filme será chato. Como determinados aspectos de nossa vida real.


O incidente incitante torna impossível o equilíbrio imperfeito da estase e força o protagonista a uma escolha.

E por que o escritor precisa ser a pessoa cruel que lança nossa personagem no seu mundo reverso de dor e provações? Porque nossa relação com nossas personagens é quase paternal. Nós precisamos ensinar nossa tese a eles. Precisamos provar a eles - e por conseguinte ao público - que o argumento dramático do nosso tema é verdadeiro.


O incidente incitante é sempre uma disrupção irônica deste equilíbrio infeliz. Irônica não no sentido de piada, mas como algo que acontece por meio do contraste agudo ou da contradição. Um bom incidente incitante é "uma engenharia genética criada para partir a alma do seu protagonista em pedaços". Tem que ser arquitetado especificamente para aquele personagem, e não para qualquer personagem. Tem que ressonar de forma absoluta no seu protagonista.


Pensando em Nemo, qual o motivo para Marlin ter tanto medo de deixar seu filho livre? Porque ele viu sua mulher e todos os seus filhos, menos Nemo, serem mortos na sua frente. Ele falhou como pai e como marido e nunca mais quer falhar de novo. Aí, o que o autor faz? Esfrega na cara de Marlin que ele falhou de novo, deixando seu filho ser levado pelo mergulhador bem na sua frente. Quem mandou ele ter medo de busca-lo além dos corais?


Pois é. O autor é um Deus mau e vingativo, que detesta discordâncias.


É claro que o protagonista vai querer voltar ao seu estado anterior. Isso é o "debate" do Blake Snyder ou "a recusa do chamado", do Vogler. O "debate" não existe "porque sim", mas porque recusar a antítese no primeiro momento é o caminho natural de qualquer pessoa no mundo. Ou peixe.


Nosso protagonista é covarde, ele não quer a mudança. Este medo da mudança, esta vulnerabilidade, é o que conecta o público à personagem. O que um protagonista covarde - que nos espelha a todos - quer de verdade é se esconder da transformação.


E como você impede que o protagonista volte à estase? Simples: o incidente incitante tem que ser incontornável. Shrek perde a privacidade de seu pântano. Marlin perde o filho Nemo, que é capturado e vai parar num aquário na Austrália. A partir daí coloca-se em movimento a máquina de conflitos, de disputas entre tese e antítese, nos levará através do segundo ato, esta coisa enlameada que apavora todos os escritores. E não devia, porque o segundo ato é muito divertido de se escrever. Especialmente para quem tem pendores sádicos. Explico:


O protagonista quer retornar ao seu ponto de estase. Para reforçar esta vontade e depois extrair dela o desejo pela transformação, o protagonista precisa ser arremessado o tempo todo de um lado para o outro, do reforço de sua tese para o reforço da antítese.

Nós criamos uma câmara de torturas. A gente joga com o protagonista, ele quer voltar, você impede, cria tensão, cria excitação, e o mais importante: cada vez que o protagonista supera uma barreira que você criou, ele sai dela imbuído de significado. Sai dela mudado. Nossa função é criar oposição, reforçar a antítese com situações crescentemente mais tenebrosas. Ser autor é torturar alguém sem passar pela cadeia. Ser autor é ser sádico. Ou masoquista, se pensarmos que todo protagonista que escrevemos é uma faceta de nós mesmos.


Marlin vai pelo oceano, ele acha tudo perigoso. E o que o autor faz? Joga uns tubarões. "Ah, eles não são tão maus." E depois: "são maus sim!". O tempo todo nós jogamos o protagonista por este tipo de dúvida. A cada situação Marlin só pensa: "eu preciso achar Nemo logo senão ele morre!".


Até que é introduzido um elemento de dúvida, geralmente uma personagem ou situação que é a personificação da antítese. Esta personagem vive bem no mundo reverso do protagonista. E agora você entende a razão: o mentor nada mais é do que o reforço constante do tema. A personificação da antítese. Seja ele Obi Wan Kenobi, Demian (pare quem leu Hesse) ou a Dory, ficando no nosso "Procurando Nemo".


Um bom herói é racional. Ele precisa ter a capacidade de entender que há uma antítese, mesmo que a negue, e nega-la é justamente o que torna a relação entre personagem e seu mentor tão interessante.


Esta personagem que é a personificação da antítese permite ao protagonista viver momentos do lado certo do seu tema. O protagonista não precisa compreender o tema ainda, mas ele pelo menos se questiona, percebe que há outra forma de viver diferente da sua. "Será que eu vivi uma mentira?" Quando esta pergunta repete-se tantas vezes até exigir uma resposta, nós chegamos ao midpoint. Este é o momento em que o protagonista, pela primeira vez, experimenta intensamente a antítese. E ele geralmente o faz pela motivação errada. Ou seja, ele ainda quer retornar à tese, mas acaba misturando isso com seu desejo (ainda inconsciente) de tentar a antítese. E geralmente problemas daí decorrem.


Em "Procurando Nemo", Marlin se recusa a ouvir Dory e seguir pelo abismo escuro e resolve dar a volta por cima dos corais (negação da antítese). Quando ele se vê no meio das águas vivas, ele tem seu momento de liberdade, ele pula de uma para a outra, despreocupado, e adora. Marlin abraça a antítese, se deixa levar sem preocupações. Aí ele vê que Dory foi picada e está morrendo. E a gente tem aí o reforço da tese. Não só um reforço simples como os diversos que vimos ao longo do segundo ato até então. É o mais candente e absoluto retorno da tese, criado especificamente para encher de dúvidas a cabeça do protagonista.


Veja como o storytelling é um equilíbrio de forças: quando seu protagonista tem um vislumbre da antítese e gosta, ele é lembrado de forma inegável de sua tese. Isto é o midpoint. Ele quase muda de lado no seu argumento, e nós, autores, o devolvemos ao início, mas, desprovido de seu equilíbrio imperfeito, só resta ao protagonista viver uma experiência de dor extrema. Nosso herói volta ao seu estado inicial graças ao nosso sadismo.


Isto é a reversão dramática.


E acontece em nossas vidas o tempo todo. A reversão dramática é incrivelmente irônica, e por isso ressoa em cada um de nós. Não é à toa que existe a expressão "ironia do destino". Extrair esta ironia do drama é essencial para potencializar o eco com o público. Olhe como a vida de Marlin é irônica, ainda que trágica: não basta Marlin perder Nemo. Todo pai ficaria horrorizado ao perder seu filho, todo mundo ama o filho. É muito pior: ele é um pai solteiro, viúvo. Punk. Mas pode ser pior ainda. Ele é um pai solteiro que viu todos os seus filhos e sua mulher serem comidos em sua frente porque ele falhou em protege-los. E de tudo isso, restou apenas um ovo, um único resquício de família, a única lembrança da felicidade que ele perdeu. Cara, churrasquinho de mãe pro pessoal da Pixar é pouco. Mas ainda não está bom. Nemo, o único sobrevivente desta tragédia, é portador de necessidades especiais, ele tem uma nadadeira pequenininha. Cara, este roteirista não apenas esfaqueia Marlin. Ele vira a faca lá dentro da ferida, por meio de ironia e dor. Toda a plateia entende e se apieda de Marlin. Todos entendem porque Marlin vive em sua tese. E todos dividem com ele a agonia de passar pela antítese. É muito poderoso.


Nosso papel como Deus de nosso mundo é fazer sempre o pior, ser cada vez mais cruel com o protagonista, até que ele chegue ao ponto de não ter mais nenhuma crença. O protagonista tem que ser destruído ao longo de sua jornada. Como Emil Sinclair, após o encontro com Demian e com sua mãe Eva no fantástico livro de Hesse, nosso protagonista tem que destruir seu mundo para nascer. E neste momento nosso protagonista descobre que suas limitações não são físicas. O problema é temático. Ele precisa superar o abandono de sua crença na tese para conseguir incorporar a antítese e chegar à síntese.


Vamos a "Procurando Nemo". Marlin diz que prometeu que nada de ruim aconteceria com Nemo. Dory diz que ele só poderia fazer isso se garantisse que nada - de bom ou de mau - acontecesse com Nemo. E Marlin percebe que foi isso o que ele tentou fazer, prender seu filho para que ele não experimentasse o mundo. Porque experimentação é risco e sofrimento. E sem experimentação não há vida. Neste ponto nós podemos colocar nosso tema para Marlin: "não importa o quanto você se prenda a quem você ama, em algum ponto da vida você tem que deixa-lo ir embora". Sendo Marlin racional como todo protagonista o é, ele poderia até não ter 100% de certeza que sim, mas também não tem mais 100% de certeza que não, como no início do filme. Talvez, confrontado com a ideia, Marlin dissesse: "Tá bom, pode ser." Mas ele ainda não pode aceitar isso completamente. E por isso fica preso no limbo. Ele ainda não aceita o tema, mas também não aceita mais sua tese. E aí ele é apresentado a uma situação na qual ele precisa abraçar o tema, viver a antítese, e não consegue. E as consequências desta falha precisam ser devastadoras. Isso é o low point, o all is lost do Blake Snyder. Não é randômico. Não precisa existir porque Blake Snyder disse que na página 75 o protagonista precisa passar por este momento. Ele existe porque o protagonista está perdido, como todos nós estamos nesses momentos de nossas vidas. Todos nós vivemos o momento all is lost, seja às vésperas de terminar um relacionamento tóxico com quem amamos, seja no dia em que entregamos nosso aviso prévio no trabalho que odiamos e pedimos as contas. O protagonista está em frangalhos. A tese do protagonista se mostrou furada. A antítese parece assustadora demais. O tema é muito assustador. E ele precisa se imbuir de um novo conjunto de códigos morais, de uma nova forma de olhar a vida, para conseguir fazer a mudança.


Esta é a razão pela qual vamos ao cinema.


Não me entenda mal, todo mundo gosta de explosão, de laser, do Capitão América levantando o martelo do Thor. Mas os comentários que mais bombaram em "Vingadores: Ultimato" foram, não por acaso, sobre o final do arco do Tony Stark, iniciado onze anos antes em "O Homem de Ferro". Estes são os momentos que nos conectam. Esta é a verdadeira catarse. Nós nos conectamos pelo sentimento de estamos perdidos.


Nosso protagonista foi da total descrença do tema, passou pela aceitação parcial do tema, e terminou no momento em que está perdido, não quer - e nem pode - mais voltar à sua tese, mas também não pode abraçar a antítese, o tema. Isto acontecerá mais ou menos no final do segundo ato.


E aí vem o segredo do Mazin e do John August, seu parceiro no podcast:


Não existem atos!

Tudo é sua estória. Neste ponto desta jornada o herói passará por seu momento de definição. Será seu maior desafio. Não resolve apenas a estória, mas resolve também seu protagonista. É o momento que trará um novo equilíbrio: a síntese. Ele precisa passar por um momento em que ele prove que vai incorporar completamente o tema do filme. Não basta falar. Ele tem que provar isso. E para ficar mais irônico, o autor vai oferecer uma última tentação logo antes deste moment