Abandonando o sonho
Atualizado: 30 de mar. de 2018
Não, eu não desisti de ser roteirista. Mas este texto fala da dor de desistir do que se ama. Porque é algo que a gente vive o tempo todo.

Quando eu era moleque sonhava em ser astronauta. Cheguei a apostar uma casa com um amigo meu que, dez anos depois de terminado o segundo grau, eu estaria na NASA. Perdi, ele nunca cobrou. Desisti porque era péssimo em matemática, e a faculdade de Astronomia era só matemática. Foda. Seria um astronauta medíocre. Foi o primeiro sonho que larguei pegando poeira na estante sonolenta dos projetos abandonados.
Depois veio a música. Essa sim foi um amor de verdade, maduro. Estudei música por dez anos. Sei ler partitura. Tenho gosto sofisticado. Escrevo arranjo e sou bom nisso. Aprendi a tocar violão, baixo, piano, bateria, guitarra, ukulele e cavaquinho. Violão eu cheguei a tocar de verdade, tinha dedo, era rápido, tinha bom gosto. Investi na carreira, cheguei a dar aula, compus. Se tivesse insistido, talvez tivesse virado músico, até porque cheguei a sê-lo por um período muito curto. Mas tinha um problema. E este problema meu, recorrente, é o que separa uma pessoa que vive de arte de outra que faz arte por hobby: a noção real da qualidade do seu trabalho. E eu desisti. Nunca seria o músico que a minha paixão pela música exigia de mim.
É claro que passou pela minha cabeça que tinha gente que tocava menos ou compunha pior do que eu vivendo de música, e vivendo bem. Mas viver de arte é uma mistura de paixão e honestidade. A arte não vive sem a verdade. Eu sabia que o meu melhor não era o suficiente pra mim. E sabia que não melhoraria, porque já havia chegado muito perto do meu melhor. E desisti. Podia ter insistido e até conseguido algo. Mas pra mim eu sempre seria um medíocre, e isso eu não podia suportar.
Acabei gravitando as artes. Fui produtor cultural, fui curador do CCBB. E desde 1996 estudo roteiro de forma séria. Acabei trabalhando com publicidade, e descobri que era muito, muito bom nisso. E vivi bem nutrindo e polindo meu talento como roteirista e escritor, enquanto era honesto comigo mesmo e vivia do que eu sabia que era muito bom: produção cultural e publicidade. E vivi feliz. Por um tempo. Porque sentir-se competente no que se faz e realmente ser competente no que se faz é essencial para prevalecer num mundo que é muito competitivo e cruel.
não posso cometer indulgências intelectuais comigo mesmo
Não me entenda mal, você pode se achar muito bom e ser na verdade mediano ou até mesmo ruim, e eventualmente viver feliz fazendo arte medíocre e ganhando um dinheirinho enquanto chafurda na sua falta de autocrítica. A ignorância é uma benção, como dizem. Mas eu sou um cara inteligente e não posso cometer indulgências intelectuais comigo mesmo.
Quando decidi me dedicar ao roteiro, a primeira certeza que tive é a de que sei escrever bem. Isso não é pedantismo, é uma constatação clara baseada em anos de observação desapaixonada sobre a minha arte, uma coisa quase esquizofrênica. Sou bom escritor. Escrevo corretamente, tenho muita noção de estrutura e progressão dramática, consigo escrever por muitas horas sem cansar. tenho base teórica e prática sólida e sou profícuo. Há escritores melhores e mais experientes do que eu, obviamente, e muitos. Mas sei que posso ser, em cinco anos, um grande roteirista. Como nunca seria se tivesse me dedicado à música. Desisti de ser um músico mediano para ser um grande escritor. E não me arrependo dessa escolha.
Mas isso não torna a escolha menos dolorida.
Eu não amo o roteiro como amo a música. Não choro com filmes tanto quanto choro com música. Sonhei por muitos anos em ser maestro. Não serei. Aprendi a lidar com essa frustração, este rombo de doze na minha autoestima.
Mesmo assim, não considero minha escolha pelo roteiro uma segunda opção. Na verdade, ela é uma inclinação clara pelo que sei fazer de melhor. É algo que também amo e no qual me sei bom, como raras vezes fui bom na minha vida. Então, não há o que pensar. Basta seguir o sentimento e a lógica, juntos.
Abandonar seu sonho exige demais. É difícil saber-se medíocre no que se ama. Mas um sonho vai te deixar infeliz se jogar na sua cara o tempo inteiro a sua própria incompetência. É como uma relação amorosa em que um se sente um merda perto do outro. Não serve. Deixa a gente amargo.
Abandonar seu sonho exige demais. É difícil saber-se medíocre no que se ama.
Provavelmente muitos de vocês que leem isso me acham um covarde que largou o que queria de verdade. Não sou. Saber deixar pra trás as partes que nos definem também é crescer. Eu amo pra caralho a música e tenho certeza de que acabarei escrevendo musicais um dia (aliás, tenho um praticamente terminado), em parceria com compositores melhores do que eu, que façam jus ao texto primoroso que, tenho certeza, eu vou entregar. Também não quero que minha experiência pessoal sirva de guia pra ninguém. Cada um sabe o que lhe faz bem ou mal e onde encontrar seu caminho.
Este texto serve pra dizer que a felicidade pode estar em largar seu sonho e descobrir outro sonho legal pra se sonhar. Um que não te jogue pra baixo, que não te faça virar um limão amargo cheio de rancor e tristeza.
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